Uma introdução a Cabanagem

Tratando-se do ensino de história regular nas escolas, normalmente tem-se a Cabanagem como um evento episódico, mais uma dentre outras revoltas regenciais, com data de início e de fim, além de estritamente regional. No entanto, hoje mais do que nunca é necessário entender seu caráter processual, de muitas tensões culminantes, emanando de diversas demandas, ideários, objetivos etc. Nesse processo, dois movimentos principais podem ser delineados. O primeiro é mais usual para o ensino tradicional, e trata-se das tramas palacianas e disputas entre as elites locais e as forças centrais de descendência metropolitana, cujo conflito já se desenvolvia desde as primeiras décadas do século XIX, notadamente a partir da independência, estando diretamente atrelado à questão da formação nacional. Essa liga-se a outra grande questão, a do "populacho", que desde os tempos coloniais enfrentava a marginalidade social, revoltando-se de tempos em tempos desde antes da década da regência. As demandas populares eram variadas devido a sua configuração diversificada, étnica e juridicamente falando, sendo que havia consideráveis oposições internas, e nem o aumento da miséria e das epidemias assegurou uma hegemonia plena de interesses.

Assim pode-se afirmar que a Cabanagem expressava um momento conjectural particular, onde esses diferentes processos políticos e sociais, ora em conluio, ora autônomos, se entrecruzaram, provocando então o confronto armado e solapando qualquer autoridade institucional. Desse grande processo pode-se traçar múltiplas temporalidades e recortes historiográficos, como se tem feito a mais de um século. Duas grandes datas se destacam nos livros didáticos: 07/01/1835, quando os rebeldes invadem a capital, e 13/05/1836, quando são expulsos pelas forças oficiais. No entanto, Caio Prado Júnior já coloca o ano de 1833 como o início de fato da revolta, ainda destacando seu caráter mais estritamente regencial, enquanto Jorge Hurley ressalta sua faceta nativista, colocando o início do movimento popular da Cabanagem em 1823. Pasquale di Paolo ainda tenta uma abordagem distinta, mais processual, embora etapista, divindo a revolta em três fases: a da luta política (1834-35); da luta social (1835-36) e da luta de resistência (1836-1848). O que depreende-se disso? Que a historicização do processo/evento é subjetiva, que não parte apenas das fontes e vestígios históricos, como também das próprias escolhas teóricas e ideológicas dos diferentes autores, assim como é com os livros didáticos!

E não para por aí, pois somando-se a isso é sempre importante ter em mente que novas vivências e inquietações individuais ou coletivas podem provocar novas reinterpretações e cronologias. O importante, acima de tudo, é fugir de simplificações e pontualidades. Um exemplo único de reinterpretação contemporânea é o filme "A Cabana", dirigido por Adriane de Faria, que chegou inclusive a ganhar o prêmio de melhor curta-metragem do 25° Festival do Rio em 2022. Sendo a única obra Paraense do evento, com 14 minutos de duração e tendo sido gravada em apenas dois dias, o curta encena uma história da Cabanagem partindo de uma perspectiva feminina e racializada, ressaltando como a expressão artística e a memória histórica coletiva podem também impulsionar novas formas de reinterpretação da história.

"Nada melhor do que nós mesmos para contarmos nossas histórias e falarmos delas de uma maneira mais apropriada, para mim essa foi a importância de ter feito o ‘Cabana’. Isso me faz acreditar cada vez mais que o Norte existe nas histórias que contamos através do cinema e que é feito pelas pessoas daqui”, declarou uma das atrizes da obra, a amazonense Isabela Catão.

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Referências bibliográficas

  • PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. O Ensaio Geral da Cabanagem: Manaus, 1832. ANPUH - XXV Simpósio Nacional de História - Fortaleza, 2009.