A Cabanagem segundo Magda Ricci

Magda Ricci designa a Cabanagem como “a revolução social dos cabanos”. Com isso, a autora retira do foco entender o movimento a partir da agência das elites e das classes governantes, ou seja, a historiadora dá relevo para uma história “vista de baixo”, levando em conta a participação popular e as diversidades inerentes a esses elementos. Conforme ela apresenta de forma esquemática, “A grandiosidade desta revolução extrapola o número e a diversidade das pessoas envolvidas. Ela também abarcou um território muito amplo. Nascida em Belém do Pará, a revolução cabana avançou pelos rios amazônicos e pelo mar Atlântico, atingindo os quatro cantos de uma ampla região. Chegou até as fronteiras do Brasil central e ainda se aproximou do litoral norte e nordeste. Gerou distúrbios internacionais na América caribenha, intensificando um importante tráfico de ideias e de pessoas.” Normalmente a Cabanagem é estudada como mais uma revolta do período regencial, sendo colocada em termos de história regional, o que em si é um paradoxo, porque, como seria apenas regional se está ligado a um fenômeno de escala nacional? Ricci argumenta que os cabanos se chamavam de “patriotas”, mas isso não necessariamente significava ‘ser brasileiro’. Este sentimento fazia surgir no interior da Amazônia uma identidade comum entre povos de etnias e culturas diferentes. Indígenas, negros de origem africana e mestiços perceberam lutas e problemas em comum. Isso tinha uma base comum no ódio que os participantes do movimento tinham com relação ao mandonismo branco e português no Grão-Pará.

Em 7 de janeiro de 1835, os cabanos, insurrectos, depuseram o governo português na Província, empossando Félix Clemente Antônio Marchel, aclamado pelo povo, mas que sucumbiu por conta de seus próprios aliados e apoiadores um mês depois. Nesta data, em nome de Pedro II, Malcher foi aclamado pelo povo para governar o Grão-Pará durante a menoridade do Imperador. Para Ricci, Marchel, ao ser empossado, acreditava que a luta tinha acabado, mas para o povo ela só estava começando. Eles tinham o interesse de expulsar da região os portugueses e os maçons. O primeiro grupo simbolizava todo um passado de exploração e subjugação social, e o segundo estava associado aos homens que contrariaram as leis de Deus e sua justiça terrena, impedindo que a justiça de Deus e dos homens, como Pedro II, chegassem até os mais explorados homens da Amazônia. Somente em agosto de 1835, durante o segundo assalto cabano a Belém, e meses após a morte de Malcher, foi que se expandiu a chacina aos inimigos cabanos na capital do Grão-Pará. Aí já estava clara que o movimento cabano é que tinha poder sobre seus líderes, e não o contrário. Mas o que então teria feito Malcher cair tão rápido? Segundo Magda Ricci, “Várias razões levaram o primeiro líder cabano a tomar esta atitude contra-revolucionária. Malcher havia ajudado a redigir um documento, no qual ele e seus compatriotas afirmavam que a morte do antigo Presidente Bernardo Lobo de Sousa estava ligada a uma exaustão generalizada e a um governo marcado “por sua prepotência e arbitrariedades”. Malcher e os cabanos, assinantes do documento, pediam à Regência que não nomeasse mais ninguém para o lugar de Lobo de Sousa até que D. Pedro II alcançasse a maioridade, pois que eles, cabanos, não receberiam “qualquer presidente que a Regência lhes mandasse”. Lembravam ainda que a prosperidade do Pará estava associada à administração de um “benemérito e patriota cidadão” a quem tinham aclamado. Concluíam sua ata demarcando que este presidente governava com o intuito de cuidar do “bem público” e não de seus interesses pessoais” (Ricci, 2006, p. 13).

Como, então, essas movimentações se conectam com o contexto nacional. Trata-se de um processo que se insere aos poucos na cabanagem, tendo uma temporalidade diversa daquela do movimento. Pode-se dizer que desde o discurso de posse de Félix Malcher já havia contradições entre a proposta de cuidar do “bem público”, atendendo as demandas dos revoltosos que o levaram ao poder, em relação às suas atitudes, especialmente a de nomear pessoas de seu círculo pessoal para cargos de relevância institucional. Aliás, efetivou a demissão em massa dos antigos funcionários, nomeando novos nomes de “sua confiança”. Neste mesmo momento, havia uma grande polêmica sobre o assunto no Rio de Janeiro. O argumento do Regente Diogo Feijó de que estas nomeações eram justas saiu vencedor, mas a indagação sobre o assunto permanecia na Amazônia inquieta.

Após uma série de medidas anti-constitucionais e de intercâmbio de alianças (como o desarmamento da população revoltosa e a garantia de permanência de certos estabelecimentos portugueses) Malcher perdeu suas bases de apoio. Seu governo ruía com vários passos em falso que dava. Especialmente quando ordena a invasão do Cônsul francês no Grão- Pará, no que desemboca numa disputa diplomática que culmina com o governo da França mandando tropas para invadir a região. Sendo assim, a especialista comenta que episódios como esse auxiliam a entender o “âmago” da revolução cabana:

“[Esta] revolução se sustentava pela aclamação popular e tinha como bandeira a morte aos portugueses e aos maçons. Ao mesmo tempo, os cabanos sofriam pressões internacionais e mantinham vínculos com o regime constitucional carioca, especialmente com o Imperador menino, Pedro II. Contrastando com tudo isto, mantinham práticas que, muitas vezes, beiravam o velho absolutismo religioso. Contudo, este nó revolucionário tem mais uma amarra. Ela se concentra nos traços biográficos de Félix Malcher e de seu grupo de atuação no Pará. É no emaranhado de vidas e famílias locais que se percebe mais claramente como se passou das belezas para as mazelas revolucionárias” (Ricci, 2006, p.16).

Com isso em mente, há que cruzar as trajetórias desses líderes. Malcher vem de uma família rica tradicional do Amazonas, tendo se casado com uma herdeira de proprietários de terras de cana-de-açúcar e escravizados na região. Teve sua carreira política incrementada na década de 1820, por ocasião dos distúrbios da emancipação política no Brasil e no Pará, Malcher revelou-se um arguto líder liberal, galgando posições nas milícias e na política local. Nessa época, saiu de um posto simples de Porta-Bandeira de Milícias para ser Tenente Coronel da mesma corporação. Assim, tornou-se vereador em Belém, mostrando-se aliado do cônego Batista Campos, líder liberal conhecido e redator do popular periódico local, O Paraense. Para a historiadora, é quase certo que Campos deveria ter sido aclamado líder da revolução de 1835, mas morreu pouco antes dos levantes populares, precisamente na fazenda de Malcher. Como prossegue explicando, em 1834, Malcher também foi perseguido e preso em sua fazenda no Acará, um pouco antes de 7 de janeiro de 1835. Foi nesta fazenda que conheceu outro importante clã cabano e dele foi patrão. Eduardo Francisco Nogueira, ou Eduardo Angelim, era agregado da família de Malcher. Também os irmãos Vinagre vinham da mesma região. Assim, pode-se argumentar que com este passado, somado à prisão a que fora submetido pelo Presidente da Província, Bernardo Lobo de Sousa, credenciava Malcher à liderança do movimento cabano. Ocorre que, à medida que o tempo corria, os inimigos de Malcher se tornavam mais pessoais, ao passo que os da massa cabana ficavam mais genéricos. O que estava em jogo na disputa pela liderança local era algo central ao debate sobre a representatividade da liderança cabana. Francisco e Antonio Vinagre lembravam a Malcher que ele era presidente por aclamação popular, o que o então presidente parecia ter se esquecido logo que chegou ao poder. Havia uma componente religiosa nesse valor da aclamação, conforme explica Magda Ricci em nota de rodapé: “Era a revolução de 7 de janeiro que justificava o poder presidencial de Malcher. Certamente, para a maioria dos cabanos, este poder de Malcher advinha de uma vontade divina. Se Deus quisesse, poderia ter dado a vitória a Lobo de Sousa”. Este não foi o caso e o “memorável” 7 de janeiro investira de poder a Malcher. “Era a aclamação dos santos e santas que fazia ricos senhores carregarem sob o sol em suas costas pesados andores com imagens divinas nas diversas procissões que saíam por Belém e muitas outras cidades do Brasil” (Ricci, 2006, p. 18). Neste caso, a tradição e o novo se fundiam em um ideal que relacionava o poder de Malcher com a vontade do povo. Portanto, era isso que estava em questão e que poderia (ou não) fazer com que o escolhido se mantivesse no poder.

Também era um momento da revolução que a “massa cabana” tentava eleger novos líderes e ampliar o seu foco de luta. A insatisfação crescente levou ao assassinato de Félix Malcher, um momento de virada na Cabanagem. Depois dela, conhecido do ex-presidente aclamado e um dos líderes da revolta, Francisco Vinagre, reconheceu o poder da Regência, em nome do Imperador. A autoridade entre os vários grupos que se formaram na revolução, em Belém e no interior, dependia de uma certa visão distante e caridosa do Imperador menino, que se associava com seus súditos-cidadãos no Rio de Janeiro e no Pará. O menino Pedro II ainda era uma figura carismática, e quebrar com a hierarquia pré-concebida pelo modelo monárquico não estava no horizonte de possibilidades no momento. Esse reconhecimento dava importantes poderes às lideranças locais, especialmente aqueles que não vinham de origens de antigos laços familiares mandonistas da região, como era o caso do clã dos Vinagre. O reconhecimento do poder das Regências também pode ter significado que Francisco Vinagre e, depois, Eduardo Angelim, estavam temerosos quanto ao seu relacionamento com as massas, e seus desejos sucessivos.

Conforme narra a autora, no mesmo dia da morte de Malcher, “Angelim e vários outros chefes cabanos viraram a noite espalhando-se pelas ruas de Belém, aconselhando, dispersando e desarmando revolucionários mais exaltados. Durante toda a noite, o alarido das massas se fez ouvir. O mais interessante é que esta foi apenas a primeira vez que a massa mostrou claramente sua voz e a elevou acima de seus líderes cabanos. Sua aprendizagem revolucionária foi rápida e se espalhou vertiginosamente pela Amazônia” (Ricci, 2006, p.22).

De Fevereiro a Agosto de 1835, Francisco Vinagre governou Belém sempre muito próximo de leis e ordens vindas da Regência. Na metade do ano, depois de tentativas e excitações, deixou o governo diante de Marechal Manoel Jorge Rodrigues, um emissário vindo do Rio de Janeiro. Nesse momento, foi feita uma eleição, e o candidato mais votado da Assembleia deveria ser provisoriamente empossado como presidente da Província. Para o clã dos Vinagre, o nome escolhido foi o de Jerônimo Pimentel. Contudo, por uma margem pequena, quem venceu foi Antônio Custódio, que tinha como sede eleitoral a cidade de Cametá, centro de resistência anti-cabana. Houve rebeldia quanto a Custódio, mas Francisco Vinagre manteve a palavra e Belém foi evacuada. O conflito parecia ter terminado; todavia, narra Ricci, “em agosto de 1835, Belém foi novamente tomada pelos cabanos”. O motivo para esta nova investida estava numa ordem de prisão que o Marechal Rodrigues deu contra Francisco Vinagre. “Com a prisão de Francisco, seu irmão Antônio reuniu tropa para voltar a Belém, numa mortandade e luta sem precedentes. Nesta segunda tomada da capital, Antônio Vinagre foi morto em combate e Eduardo Angelim assumiu seu lugar em plena luta” (Ricci, 2006, p.22).

(Jornal Sentinela Maranhense, exortando o movimento)

O discurso de posse de Angelim foi marcado pelo tom religioso e pelo respeito à hierarquia e à ordem constitucional. Mesmo assim, Eduardo Angelim não conseguiu sustentar-se por muito tempo. Ancorou-se em auxílio de líderes religiosos para conter agitações. Os cabanos também estavam muito debilitados, especialmente pelo saque de armazéns, uma dispersão do movimento, sem falar de uma epidemia de varíola que dizimou muitos deles. Além disso, Angelim teria mandado matar, surrar ou prender escravos e homens livres pobres e indígenas que teriam “lavado mãos em sangue inocente”. Ao que parece, foi esta situação que fez com que Angelim resolvesse fugir. Essa retirada foi vista pelas autoridades centrais como um “armistício”, um modo de selar a paz entre o Estado e os revoltosos. Do lado cabano, a fuga foi interpretada diferente. A historiadora comenta o testemunho de um cabano, Martinho Braz, em 1836, um mês depois da fuga:

Martinho Braz afirmava que estaria a postos até o “ultimo pingo de sangue pela religião católica e não pela fama da legalidade”. Fazia uma referência clara a Israel e provavelmente à fuga do Egito, na qual Moisés levou o povo de Deus a atravessar o Mar Vermelho, lembrando que seu grupo era de “filhos de Israel que experimentaram rigores dos hereges” (...) À morte da sua “gente” somava-se a “terra lhe tremer” e “os bichos do chão a comer do Ente Supremo”. Estes elementos reforçam a comparação entre a fuga de Angelim e a de Moisés (...) Além disto, o narrador se recusava a ser nomeado de “anarquiano”, enfatizando que acreditava em autoridades, mas não reconhecia a “legalista” (Ricci, 2006, p.25).

Assim, não se poderia cumprir a palavra dada por Angelim, a de fazer-se um armistício por três meses.

A Cabanagem é uma revolução que exportou líderes revolucionários e seus ideais. Antes disto, contudo, o mesmo movimento ensinou a liderança a muitos interioranos da Amazônia, transmitindo-lhes um significado próprio para palavras como “constituição” e “patriotismo”. Ao invés de lerem estas máximas sobre as ordens decididas na Corte ou por seus líderes máximos em Belém, muitos cabanos acreditavam poder trilhar seu percurso, fazendo sua leitura e interpretação para aquilo que consideravam justo. Reliam as palavras do Bispo, de Angelim ou mesmo do Imperador. Depois desses movimentos, pode-se dizer que a luta se “interiorizou”, saindo de Belém e dos centros urbanos para se espalhar pela Amazônia, em que desenvolveram mais e melhores táticas de luta. A historiadora escreve que “Em cada vila ou aldeia nasciam outros chefes cabanos. Populações inteiras de índios e quilombolas foram chamadas à luta armada em um movimento tão vasto e complexo que só pode ser entendido dentro de uma perspectiva internacional. Nas fronteiras com os mundos inglês, holandês, hispânico e francês, o antigo Grão-Pará sempre foi alvo de disputas políticas e territoriais. A revolução cabana foi o estopim para contatos e trocas mais intensas de mercadorias (armas e alimentos), mas também de idéias e práticas revolucionárias. É neste rico mundo que os cabanos criaram seus próprios mecanismos construtores de sua cidadania” (Ricci, 2006, p. 28).

Pode-se dizer que o “pós-Cabanagem” significou para os integrantes do movimento mudanças na estrutura agrária, estimulando-se a criação de latifúndios ainda hoje tão presentes na Amazônia. Enfim, hoje na região a Cabanagem é símbolo de luta e resistência do povo. Muitos de seus antigos membros, hoje sindicalistas e militantes políticos, vieram a integrara o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), cultuando a memória da “revolução cabana”. Conforme conclui a especialista,

Há um povo das florestas, que vive da extração de produtos da mata e dos rios e em guerra por sua conservação e sustentação. Há um povo indígena multifacetado, mas uníssono na guerra com os brancos e a usurpação que estes continuam fazendo de suas terras e riquezas. Existe ainda um povo afrobrasileiro que cotidianamente reivindica a propriedade de seu território, obtido pela luta quilombola e escrava. Todos estes povos se deparam constantemente com problemas como a devastação ecológica, a questão fundiária, a miséria e, sobretudo, a falta de acesso à plena cidadania. Sua luta presente também rememora a dos tempos cabanos. Trata-se de povos amazônicos e de uma luta secular que merece ser conhecida e amparada (Ricci, 2006, p. 30).

Referências bibliográficas

  • RICCI, Magda. Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840. Tempo (Dossiê), Niteroi, v. 22, 2006, p. 5-30..